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sexta-feira 27 de junho de 2025


Ludopatia: o vício em jogos e azar e apostas

FOTO: Daniel Conzi/Agência AL
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O vício em jogos de azar e apostas online tem impactado profundamente a vida de muitos brasileiros. A chamada ludopatia não só leva pessoas à ruína financeira e patrimonial como deixa sequelas na saúde mental das vítimas e seus familiares.

Para tratar deste problema, já considerado uma questão de saúde pública os setores de comunicação da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Agência AL, TVAL e a Rádio AL) vem produzindo uma série de reportagens especiais com histórias de pessoas que convivem com esse vício, bem como sobre os desafios para seu enfrentamento –  além dos projetos de lei em tramitação na Assembleia Legislativa que buscam enfrentar esse problema que já causa impactos na economia.

Em uma das reportagens, os relatos de Cláudia, uma aposentada de 71 anos, e Luan, um entregador de 34 anos (nomes fictícios).  Ambos perderam praticamente tudo — desde economias e bens até vínculos familiares — ao se envolverem com jogos virtuais, como cassinos e apostas esportivas. Eles começaram apostando pequenas quantias, mas a promessa ilusória de lucros rápidos os levou a sucessivas perdas, endividamento e até comprometimento da saúde mental, demonstrando como a ludopatia pode ser devastadora.

Os dramas de Cláudia e Luan, duas vítimas da ludopatia

A professora aposentada Cláudia (*), de 71 anos, lamenta as decisões tomadas nos últimos anos e diz sentir uma “sensação de vergonha e fracasso”. Ela começou a jogar para se distrair e afastar a solidão após a morte do marido, em 2022. A brincadeira começou com pequenos valores nos jogos on-line, incluindo o famoso Tigrinho. Pouco depois, o que era uma distração tomava todo o seu tempo.

O primeiro alerta veio quando todo o valor da aposentadoria foi para pagar o cheque especial e cartões de crédito. “Não me sobrou praticamente nada para comprar os meus remédios. Mas não me preocupei, era só ligar para meu gerente e fazer um empréstimo. Depois comecei a fazer consignados”, lamentou.

Cláudia vendeu o carro deixado pelo marido, pagou parte dos empréstimos e apostou tudo de novo. A alegria durou pouco. “Perdi tudo em menos de duas semanas”, revela. “Juro que pensei em vender, me reorganizar e parar. Mas queria aquela sensação de vitória que o jogo traz”.

Coube à nora de Cláudia, uma profissional de saúde, perceber que havia algo errado. Mesmo assim, somente depois que uma das netas a flagrou jogando pelo celular. “Eu escondi o que pude pois iriam brigar comigo. Mas antes disso acabei com a poupança de uma vida inteira e me endividei. Eu nunca tive dívidas”, conta ela, que vem recebendo atendimento psiquiátrico e psicológico, mas teve o celular “confiscado” pela família.

“Minha neta praticamente está morando aqui para me vigiar. Ainda sobrou a casa onde moro, porque havia transferido para o nome dos meus filhos quando fiquei viúva”, acrescentou a aposentada.

Já Luan ficou sem dinheiro para pagar a pensão do filho; agora conta com o apoio da religião para superar o vício. Ele perdeu tudo, incluindo a moto que usava para o trabalho, com as apostas esportivas. “Eu acertava os bolões entre família e amigos e achei que poderia transformar meus palpites em lucros”, afirma.

Jogando pequenos valores e tendo algum retorno financeiro, Luan teve a ideia de buscar mais “respiro” no orçamento, usando parte do salário destinada ao aluguel para apostar nas bets. A escolha por jogos “fáceis” e que pagavam pouco parecia certeira.

“Era o final da pandemia, tudo mais difícil. Como eu tinha dez dias entre a data que eu recebia e a que eu precisava pagar aluguel, pensei que poderia dobrar ou triplicar meu dinheiro. Botar para render, sabe?”, conta, acrescentando que os grupos em redes sociais trazem uma série de dicas e palpites. “Dediquei às apostas em jogos de tênis. Ele é diferente do futebol, sem tantas zebras. Na maioria das vezes os melhores ranqueados vencem. Só que é esporte, e numa dessas apostas grandes perdi todo o meu salário pela primeira vez”.

Sem recursos para o aluguel e as compras do mês, Luan cobriu a primeira perda com cartão de crédito. Mas o que ele chama de “euforia” nunca o abandonou.

Entregador na região metropolitana de Florianópolis, Luan viu uma luz no fim do túnel: vendeu sua moto, adquiriu uma mais barata e apostou novamente para tentar reverter o prejuízo. “Depois que cobri as contas, usei o resto para apostar de novo. Um dia, fiz uma aposta única para recuperar e de novo não deu certo. Nunca mais saí disso”, revela. “Percebi que não tinha nenhum real para almoçar e nem para colocar gasolina na moto para ir trabalhar. Eu sou MEI e a empresa que eu prestava serviços logo me dispensou. Fiquei sem nada”.

Os colegas do grupo de futebol promoveram vaquinhas e o auxiliaram por cerca de três meses, mas, diante de novas apostas e novas perdas, a ajuda ficou escassa.  “Quando eu percebi já estava num buraco sem fundo. Atrasei até a pensão e só não fui preso porque minha ex-esposa percebeu que eu precisava de ajuda”, conta. “Mas não tenho visto o meu filho com a mesma frequência”.

Luan tenta se manter longe de jogos, mas admite ser uma tarefa praticamente impossível. “Eu amo futebol, respiro futebol. Parei de assistir jogos na televisão porque só aparecem as bets, o tempo todo. Todo mundo apostando e feliz e eu sem nada”, acrescenta. “Se eu fosse viciado em bebidas, era só não entrar no bar ou não sair de noite. Acho que seria até melhor. Mas como eu vou fugir das bets e não acessar o celular?”

Enquanto tentam se reerguer, Cláudia e Luan buscam caminhos diferentes. A aposentada se apoia na ajuda profissional particular e é mantida sob rigorosa fiscalização da família.  “Não tenho mais celular”, lamenta.

Após alugar um carro semanalmente para trabalhar como motorista de aplicativo, Luan buscou suporte na religião. O objetivo: equilibrar as contas e alugar uma casa de dois quartos. “Quero voltar a ter um espaço para receber meu filho aos finais de semana”, completa.

Os impactos na economia e a falta de dados na saúde

Os brasileiros são bombardeados por propagandas de cassinos e apostas em praticamente todos os meios de comunicação, desde influencers até camisetas de clubes de futebol.

Os poucos números oficiais existentes sobre uma atividade ainda tão recente já trazem uma estimativa do tamanho do estrago social e econômico. O investimento apenas das bets em publicidade no Brasil chegou a R$ 6 bilhões em 2024. E a receita global de jogos de azar chegará a US$ 700 bilhões até 2028, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

De acordo com pesquisa realizada pela XP Investimentos, os gastos dos brasileiros em jogos de apostas on-line no ano de 2024 variou entre R$ 90 bilhões e R$ 130 bilhões, sendo que, desde 2018, a participação destas apostas no orçamento familiar triplicou. O impacto foi cinco vezes maior nas classes D e E.

A Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, constatou que 63% da população teve sua renda comprometida com jogos de apostas. Já um relatório do Banco Central do Brasil (BCB) demonstrou que 5 milhões de beneficiários do programa Bolsa Família utilizaram R$ 3 bilhões em jogos de apostas.

Com dívidas, o brasileiro deixou de comprar. O varejo deixou de faturar de R$ 103 bilhões ao longo do ano de 2024 em decorrência do redirecionamento dos recursos das famílias para as plataformas virtuais de apostas esportivas e de cassino online. É o que indicou estudo divulgado em janeiro pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

Todos os dados integram extenso relatório formulado pela da Unidade de Auditoria Especializada em Saúde (AudSaúde) do Tribunal de Contas da União (TCU) e divulgado no último dia 28 de maio.

Saúde sem dados
O objetivo do documento do TCU é buscar uma saída para uma questão que parece ser ainda mais nebulosa e sem nenhuma estimativa oficial: qual o impacto das apostas na saúde dos brasileiros?

E é justamente nesse ponto que as histórias de Luan e Cláudia se cruzam novamente. Enquanto a aposentada não conseguiu atendimento psicológico no posto de saúde e recorreu à clínicas particulares, o motoboy sequer sabia que precisava buscar ajuda.

Nenhum dos dois sabia que a compulsão por jogos é, na realidade, uma doença que tem inclusive um nome: ludopatia.

Os dois fazem parte do universo de 1,4% da população envolvida em jogos de azar problemáticos. E por problemáticos entende-se aqueles que registram perdas substanciais do patrimônio. A falta de informações e dados estatísticos sobre o número de pessoas que buscam atendimento na rede de saúde, aliada à vergonha pelo vício, transforma o problema em algo mais difícil de ser enfrentado.

“Além de não haver estruturação consistente para informar a população quanto ao risco de vício em jogos de aposta on-line, o que pode ampliar o número de pessoas afetadas, a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) dispõe de recursos muito limitados e não possui protocolos padronizados para realizar o manejo clínico desses pacientes, embora projeções epidemiológicas de jogo problemático indiquem demanda latente, que pode crescer rapidamente”, afirma o ministro do TCU, Jhonatan de Jesus, em seu relatório.

“Destacam-se, ainda, a ausência de indicadores claros sobre o número de pessoas atendidas no SUS e a carência de campanhas educativas e mecanismos de bloqueio ou restrição ao público infantojuvenil; a massiva publicidade das apostas, aliada à falta de alertas proporcionais quanto aos riscos de dependência, contribui para que cresça o contingente de pessoas expostas ao jogo problemático”, completa o ministro.

REDAÇÃO, JORNAL DO COMÉRCIO
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