Por que estamos tão polarizados? Essa é o tema central do livro “Biografia do abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil”, do cientista político Felipe Nunes e do jornalista Thomas Traumann. Lançado em dezembro de 2023, “Biografia do abismo” apresenta um panorama do que foram as duas últimas eleições presidenciais (a de 2018, com a vitória de Jair Messias Bolsonaro, e a de 2022, com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência do Brasil, para um terceiro mandato) à luz do transbordamento de uma polarização que os autores defendem como extrema.
É provável que você, em algum momento dessas duas últimas eleições, teve que lidar com opiniões políticas contrárias a sua, com alguma discussão mais ríspida e até um bloqueio em relação a outras pessoas. Mas pensa comigo: não foi sempre assim? Conviver com diferentes pontos de vista tem ligação direta com a nossa própria existência enquanto seres humanos. Mas por que agora é diferente? Nunes e Traumann vão até 2010 em busca de respostas.
“É provável que você, em algum momento dessas duas últimas eleições, teve que lidar com opiniões políticas contrárias a sua, com alguma discussão mais ríspida e até um bloqueio em relação a outras pessoas”
Jair Bolsonaro era um deputado federal do baixo clero em 2010. Nunca falou ou apresentou um único projeto de relevância e tinha como postura a defesa do regime militar. Nessa época, Bolsonaro era arroz de festa em programas como Superpop e Pânico, espaços onde sempre entregou entrevistas com declarações bombásticas. Mas foi 11 anos antes, em 1999, que Bolsonaro assustou. Durante uma entrevista à TV Bandeirantes ele disse:
“Através do voto, você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada. Você só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando pelo FHC. Não deixando ir para fora, não. Matando! Se vai morrer
alguns inocentes [sic], tudo bem”.
O FHC a quem ele se referiu em 1999 era o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Sem redes sociais e sem amplificação do debate sobre as falas do deputado federal, as declarações de Bolsonaro “só” pegaram mal no meio político e foram debatidas em editorias de jornais. Alguns parlamentares até ensaiaram um pedido de cassação contra o falastrão deputado. Deu em nada.
Mas voltemos a 2010.
Foi nesse ano, que Bolsonaro recebeu de assessores vídeos de um debate na Câmara dos Deputados sobre um projeto do Ministério da Educação para o combate ao preconceito nas escolas. Bolsonaro foi o primeiro enxergar a oportunidade nas cartilhas que seriam enviadas ao professores. Batizou o material de “kit-gay”, acusou o PT de “incentivar o ‘homossexualismo’ nas crianças e de impor a ideologia de gênero nas salas de aula”.
Novembro de 2010 era final do segundo mandato de Lula e já tínhamos o resultado da eleição daquele ano, que elegeu Dilma Rousseff, também do PT, para um mandato de quatro anos. Mesmo garantindo a sucessão presidencial, o PT vinha sangrando desde 2005, quando Roberto Jefferson, presidente do PTB à época, denunciou que o PT “dava mesada de R$ 30 mil a parlamentares”. A denúncia foi capa da Folha de S. Paulo do dia 6 de junho de 2005: nascia o Mensalão.
Naquela entrevista à jornalista Renata Lo Prete, Jefferson afirmava que o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, pagava um mensalão a parlamentares em troca de apoio no Congresso. Eram R$ 30 mil mensais entregues a representantes do PP e do PL. Sim, o PL, hoje a sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Na esteira do Mensalão, o PT enfrentou outros dois grandes problemas: a economia em frangalhos no início do segundo mandato de Dilma Rouseff e a Operação Lava Jato. O sentimento antipetismo transbordou e Bolsonaro foi reeleito deputado federal em 2014, com 464.572 votos, a maior votação daquele ano. Bolsonaro era a figura viva do antipetismo. Em 2016, na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, ele seria apenas mais um dos 366 deputados a votar pelo afastamento da petista, mas tornou-se o mais lembrado pela justificativa que apresentou.
“Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade,
contra o Foro de São Paulo, pela memória
do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
o pavor de Dilma Rousseff”.
Bolsonaro estarreceu jornalistas e políticos. Mas para ele não fazia diferença alguma. Foi nas redes sociais, com amplo apoio, comentários elogiosos e compartilhamento em massa de suas declarações, que Bolsonaro se tornou, enfim, presidenciável de fato.
“Bolsonaro estarreceu jornalistas e políticos. Mas para ele não fazia diferença alguma. Foi nas redes sociais, com amplo apoio, comentários elogiosos e compartilhamento em massa de suas declarações, que Bolsonaro se tornou, enfim, presidenciável de fato”
Nunes e Traumann afirmam que “quando a polarização vira uma relação de afeto, o adversário passa a ser o seu inimigo, uma ameaça à própria existência do grupo, um mal a ser destruído. Esse cenário de polarização afetiva se completa com o comportamento mais agressivo nas redes sociais, a expectativa de pronta resposta a tudo o que é postado, o narcisismo crescente e o desejo de ser identificado pelas causas que o eleitor considera justas, quase todas pautadas pelas máquinas digitais dos atores políticos”.
Faz sentido.
Esse fenômeno é conhecido como vida em bolha: as pessoas nutrem a ilusão de que todo mundo pensa como elas e aprovam suas atitudes. A ofensa pública prevalece e são criados ecossistemas de maior intolerância a quem pensa diferente. Há também, em contraponto, a Espiral do Silêncio: quando um cidadão percebe estar em minoria, tende a esconder suas reais opiniões, até que, em um processo em espiral, esse ponto de vista passe a dominar o cenário e ele passe a se sentir confortável em participar do debate.
O oposto disso é dizer o que realmente pensa e, segundo Nunes e Traumann, a disputa passou a ser sobre a forma como cada lado enxerga o mundo. Na visão dos autores, os brasileiros são mais confiantes para tratar de polêmicas com a família, em seguida com os amigos, e só depois, com colegas de trabalho e com estranhos. O retorno de Lula ao Palácio do Planalto aumentou ainda mais o abismo em que nos encontramos.
O caso do Mensalão estourou em 2005 e, mesmo assim, não foi suficiente para tirar a reeleição de Lula, em 2006. Os bons índices econômicos da época e com o Brasil em franco crescimento, garantiram a blindagem necessária para a reeleição. O cenário que reelegeu Dilma Rousseff em 2014 era outro: no mesmo ano, no dia 17 de março, aconteceu a primeira de 80 fases da Operação Lava Jato. Mesmo assim, Dilma se reelegeu com 54 milhões de votos contra 51 milhões de votos do oponente, Aécio Neves (PSDB).
Por que Bolsonaro não se reelegeu em 2022?
A resposta a essa pergunta não encontra consenso, mas jornalistas e cientistas políticos atribuem a derrota de Bolsonaro a ele mesmo. A falta de consenso está ligada aos atores e episódios que fizeram o PT retornar ao poder. Para alguns, a falta de sensibilidade de Bolsonaro durante a pandemia de covid-19 influenciou na derrota. Eles citam as cenas do ex-presidente imitando pessoas sem ar, afirmando que não era coveiro ou reduzindo a gravidade da covid-19 a uma gripezinha. Para outros, o motivo da derrota foi a cena grotesca da deputada federal Carla Zambelli (PL/SP) correndo com uma arma apontada em direção a um jornalista, na véspera do segundo turno das eleições de 2022.
Como lidar com a polarização? Como conviver com esse ecossistema de extremos, xingamentos e agressões?
Na conclusão do livro, Nunes e Traumann avaliam que o caminho talvez seja impor limites claros de “até onde vai a opinião política e onde começa a intolerância. Não se pode, em nome de uma liberdade de expressão sem limites, naturalizar o ódio, o preconceito e a intimidação”.