Um grupo de 25 cientistas brasileiros da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), liderados pela neurocientista piçarrense Cláudia Pinto Figueiredo, descobriu que uma proteína do vírus da Covid-19 tem a capacidade de ultrapassar barreiras protetoras do cérebro e gerar inflamações, resultando em prejuízos de memória a longo prazo. O estudo, que ganhou as páginas de uma renomada revista científica internacional, é a primeira peça de um enorme quebra-cabeças que tem como imagem a vida.
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Os estudiosos descobriram que a proteína Spike é uma das responsáveis pelos danos na memória – relatados por milhares de pessoas acometidas pela doença, que ceifou a vida de milhões. O corpo técnico das universidades constatou que quando a proteína consegue penetrar a barreira hematoencefálica e atingir a massa encefálica, ocorre um conflito neural que tem como resultado a perda de memória.
“Este estudo ainda não consegue propor um tratamento medicamentoso. Então o que que muda? Muda o entendimento da doença e as condutas médicas em relação ao diagnóstico desta condição clínica. Os pacientes recuperados da Covid-19 podem apresentar prejuízos de memória persistentes e isso deve ser ponderado e não confundido com outros tipos de demência”
CLÁUDIA FIGUEIREDO
“Este estudo ainda não consegue propor um tratamento medicamentoso. Então o que que muda? Muda o entendimento da doença e as condutas médicas em relação ao diagnóstico desta condição clínica. Os pacientes recuperados da Covid-19 podem apresentar prejuízos de memória persistentes e isso deve ser ponderado e não confundido com outros tipos de demência”, detalha Cláudia.
Utilizando modelos animais, os cientistas observam que a proteína Spike do SARS-CoV-2 é capaz de causar inflamação cerebral com efeitos de longo prazo. A intensidade e duração dos sintomas parecem estar ligadas a questões genéticas e de estilo de vida. “A boa notícia é que essa bagunça que a Spike induz no cérebro pode ser revertida. O tempo é um grande aliado, visto que os prejuízos tendem a diminuir com o passar dos meses. Além disso, os velhos hábitos saudáveis, como exercício físico regular e dieta equilibrada, contribuem para uma melhora mais rápida da memória no pós-Covid. Estes hábitos também são fundamentais para prevenção e melhora dos sintomas de outras doenças neuroinflamatórias mais graves, como por exemplo a Doença de Alzheimer”, explica a coordenadora do estudo.
Os resultados abrem ainda outro leque de perguntas, em especial quanto ao papel das vacinas e o impacto das variantes da doença sobre o pós-Covid. “A pesquisa em si já abre um leque enorme de perguntas. Uma pergunta extremamente importante é o papel das vacinas na prevenção da perda de memória induzida pela infecção. A vacina simplesmente protege contra a gravidade dos sintomas respiratórios ou também protege o cérebro dos pacientes infectados pelo vírus? Outra pergunta fundamental é: As diferentes variantes do SARS-CoV-2 têm diferentes impactos sobre o cérebro? Em nosso estudo utilizamos a proteína Spike oriunda da primeira cepa viral (Wuhan), que infectou os primeiros pacientes na China. Agora pretendemos testar os efeitos da proteína Spike oriunda dos vírus mutantes (variantes Delta e Omicron) que causaram as ondas subsequentes de Covid-19. Será que cada variante viral causa diferentes impactos sobre o cérebro? São perguntas que já estamos focados em responder”, adianta a neurocientista.
Diante da comprovação dos efeitos negativos da Spike sob o sistema nervoso de pacientes previamente diagnosticados com Covid, a equipe de cientistas tem ainda outra grande dúvida. O longo prazo. “Será que a Covid-19 aumenta o risco dos indivíduos para desenvolver doenças neurodegenerativas, como Alzheimer ou Parkinson. Também estamos desenhando ferramentas para investigar esta questão”, enfatiza a líder do estudo.
Questionada sobre o sentimento de contribuir com a ciência mundial diante de uma temática que mudou a história moderna, Cláudia denotou gratidão. Mas, sabe que o resultado foi apenas uma peça do quebra-cabeças. “É gratificante para toda a equipe que se empenhou em conseguir linhas de financiamento para fazer a pesquisa acontecer e trabalhou duro durante os momentos mais difíceis da pandemia. É importante ressaltar que em uma única pesquisa não encontramos a cura para uma doença. A ciência é como um grande quebra-cabeças, e cada pesquisa encaixa uma pecinha no todo. Nós temos certeza de que montamos uma parte importante deste quebra-cabeça e que outras pesquisas, baseadas em nossos achados, encontrarão a solução final para este problema”, finalizou.
O estudo foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – (FAPERJ) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (INCT-INOVAMED), sendo publicado na revista Cell Reports.
“ABRE ASPAS” | Cláudia Pinto Figueiredo, neurocientista
JC – A partir dessa descoberta, o que poderá ser realizado para amenizar os efeitos da doença?
láudia – Essa primeira pergunta é bem difícil. Nossos resultados são pré-clínicos, realizados em modelos animais. Para que determinada pesquisa descubra um novo medicamento, são necessários grandes estudos clínicos, envolvendo muitos pacientes. De maneira prática, a contribuição deste estudo é comprovar que a Covid-19 induz prejuízos de memória, que esses prejuízos podem persistir por meses, mas que são na maioria das vezes reversíveis. Esse tipo de achado dá um sopro de esperança para os pacientes acometidos por esta sequela devastadora.
JC – Qual é o sentimento da equipe ao apurar essa questão e prospectar uma melhora na vida das pessoas após um período de milhares de perdas?
Cláudia: O sentimento é de missão cumprida. Nossa equipe conseguiu entregar respostas para população em relação ao que foi sendo observado durante a pandemia. Descrevemos o mecanismo pelo qual a infecção pelo SARS-CoV-2 induz prejuízo cognitivo tardio nos pacientes. E esse avanço no entendimento da doença é o único caminho para o desenvolvimento de abordagens terapêuticas e preventivas inteligentes. É com imenso orgulho que entregamos resultados à população de uma jornada de estudo que começou lá no começo da pandemia. Lembro-me de vir passar a primeira parte da quarentena aqui, em Piçarras, e aqui eu pensei nas primeiras perguntas e desenhei os primeiros experimentos, considerando as ferramentas disponíveis no Brasil naquele momento. A comunidade científica nunca parou de trabalhar, nosso grupo de pesquisa voltou ao trabalho presencial precocemente, e voltou cheio de vontade. É uma sensação de missão cumprida, cumprimos nosso papel social e fizemos do Brasil um protagonista no no cenário científico internacional, mesmo com os inúmeros cortes de recursos federais ocorridos nos últimos anos.